Ao longo do segundo ano de vida a criança vivencia enorme avanço em suas competências: aprende a andar, a formular as primeiras frases, aprimora suas aptidões motoras etc. Se até então seu maior prazer era ficar no colo da mãe, usufruindo da paz e aconchego similar ao que foi perdido com o nascimento e sentindo por ela aquilo que chamamos de amor, agora ela gosta também de circular, especular o ambiente, tentar entender para que servem e como é que funcionam os objetos. Coloca quase tudo que encontra na boca, tenta sentir seu tato, observa o que acontece quando deixa que caiam no chão. Dá sinais de grande satisfação a cada nova descoberta. Está praticando os primeiros atos próprios de sua individualidade – e se deleitando com eles.
Tudo isso acontece na presença da mãe. Sim, porque se ela for para um outro local, a criança imediatamente abandona o que está fazendo e sai em disparada atrás dela. O mesmo acontece se levar um tombo: corre chorando de volta para o colo. Diante da dor física ou da iminência de distanciamento exagerado da mãe, a sensação de desamparo cresce muito rapidamente e aí torna-se absolutamente necessária a reaproximação. Há, pois, uma clara alternância de preferências: estando tudo em ordem, o que a criança quer é exercer os prazeres da sua individualidade em formação; ao menor desconforto, busca no aconchego materno (amor) o remédio para todas as dores.
Não há como não compararmos nossos comportamentos ditos adultos com o que acabei de descrever: queremos exercer nossa individualidade com a máxima liberdade, mas queremos voltar para casa e encontrar o parceiro à nossa espera. Ficamos bem longe da pessoa amada por algum tempo, mas depois o desejo maior é o de nos aconchegarmos; se isso não é possível, sentimos a dor forte correspondente à saudade (mistura de abandono com lembrança do calor que advém da companhia). Temos a nosso favor o benefício de um imaginário mais rico e a capacidade de nos comunicar à distância graças aos recursos tecnológicos: nos sentimos aconchegados, mesmo estando longe, graças às palavras e juras de amor.
No convívio íntimo, parece que queremos mesmo é encontrar uma fórmula capaz de conciliar amor e individualidade: quero, por exemplo, assistir ao programa de TV do meu interesse e quero que minha amada esteja ao meu lado, se possível bem agarradinha. Ela, também interessada no aconchego, poderá tentar achar graça, por exemplo, no jogo de futebol que tanto me encanta. Mas talvez não consiga e aí começam os problemas. Ela se afastará, indo em busca daqueles que são os seus reais interesses individuais. Eu me sentirei rejeitado, abandonado e mal amado; tentarei pressioná-la com o intuito de fazer com que volte. Ela, prejudicada em seus legítimos direitos, se revoltará e a briga (chamada de “briga normal dos casais”) será inevitável.
O homem é, ao mesmo tempo, a criança e a mãe. O mesmo vale para a mulher. Querem exercer sua individualidade, mas sem se afastar muito um do outro. Lutarão pelo poder, para definir quem irá impor o ritmo e a programação. Por maiores que sejam as afinidades, sempre irão existir atividades que são do interesse exclusivo de um dos membros do casal. A fórmula tradicional – homens mandam e mulheres obedecem – não funciona mais (felizmente).
O que fazer? Só há um jeito: o crescimento emocional de ambos para que a dependência típica do amor infantil se atenue. Que cada um consiga se sentir em condições de exercer suas atividades, de modo a liberar o parceiro para fazer o mesmo.
Flávio Gikovate
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