OS PRAZERES DO CORPO - Vive bem quem consegue superar mais ou menos rapidamente as dores inexoráveis da nossa condição e que tem os meios necessários para viver próximo do ponto de equilíbrio, usufruindo de um bem-estar bastante gratificante. Esses são ingredientes essenciais à felicidade. Ela seria incompleta e desinteressante se fosse composta apenas disso. A ela se agregam os prazeres positivos, aqueles que não dependem da existência prévia de nenhum tipo de desconforto ou dor.
O exemplo mais típico de um prazer positivo é a excitação sexual: saímos do zero, do bem-estar, para um estado de inquietação sentido como extraordinariamente agradável. Sentimos a excitação e somos conscientes disso. Quando ela é muito intensa pode até mesmo interromper o processo de pensamento, determinando um estado de êxtase efêmero, mas suficientemente gratificante para justificar a busca insistente do prazer erótico por parte de quase todo o mundo.
A excitação sexual se manifesta a partir da estimulação táctil das zonas erógenas tanto quando elas são praticadas individualmente como também quando elas derivam de trocas de carícias entre duas pessoas. Nos homens, a excitação pode depender também de estímulos visuais, sem que haja nenhum tipo de contato. Os objetos de desejo sexual são de natureza muito diferente dos objetos amorosos, pois são múltiplos e indiscriminados; e nem sempre estão em sintonia com os sentimentos amorosos. O objeto do amor é muito específico, de modo que penso que só neste caso cabe falar em efetiva relação. As trocas de carícias eróticas são chamadas de relações sexuais, mas não sei se chegam a ser mesmo “relações” – isso quando acontecem fora do envolvimento amoroso.
A questão sexual é extraordinariamente complexa em nossa espécie por diversos motivos. Como as “relações sexuais” podem determinar a reprodução, sempre estiveram fortemente regulamentadas. Sempre foram mal vistas por certas correntes religiosas por serem fonte de grandes prazeres. Além disso, contém mais um ingrediente, este sim difícil de ser equacionado. Estou me referindo à vaidade, ao prazer erótico relacionado com o exibicionismo, com o atrair olhares de admiração e eventualmente de desejo, com o ato de se destacar. O destaque pode acontecer por força da beleza ou outras competências físicas extraordinárias. Ele pode se manifestar também em outras áreas, como nas realizações profissionais, artísticas ou intelectuais. Atraem a admiração e despertam uma excitação muito grande na pessoa que consegue se sobressair.
Penso na vaidade como o mais complicado elemento da nossa subjetividade. Ela é responsável pela busca de notoriedade, de chamar a atenção, da pessoa se sobrepor às outras. Acontece que aquelas que não conseguem igual destaque – e que são a maioria – se sentem diminuídas, incomodadas, invejosas e revoltadas. O destaque implica sempre na presença de propriedades incomuns, privilégio de uma minoria. Constituem-se assim as “felicidades aristocráticas”, relacionadas com a beleza física, com dotes atléticos espetaculares, com uma inteligência privilegiada, algum dote artístico valorizado ou mesmo a posse de muitos bens materiais. Elas podem fazer bem aos que as possuem, mas desequilibram as sociedades, gerando ondas de hostilidade invejosa insolúveis.
O sexo é prazer físico positivo por excelência e, por meio da vaidade, pode contaminar também os prazeres intelectuais. Existem outros prazeres físicos e que são de natureza mais democrática. Talvez devêssemos, como sociedade e como indivíduos, nos ater mais a eles. Podemos nos deleitar com a dança, com os esportes individuais por meio dos quais estamos apenas nos tornando cada vez mais bem condicionados – sem expectativa competitiva alguma. Ficamos felizes ao conseguirmos chegar ao peso desejado, ao sentirmos nosso corpo rendendo o máximo. Essas são “felicidades democráticas”, uma vez que estão aí à disposição de todos aqueles que se disciplinarem e dedicarem algumas horas da semana ao cultivo do corpo.
OS PRAZERES INTELECTUAIS - Graças ao “software” sofisticado que conseguimos construir, fomos capazes de desenvolver prazeres intelectuais autônomos – apesar de que eles também estão contaminados com a vaidade, elemento erótico por excelência. Aprender é um prazer positivo que nos acompanha desde tenra infância e que deveria ser cultivado sempre. Aprender é prazer profundamente democrático, já que aí há espaço para que todos evoluam. Perceber que conseguimos apreciar melhor as artes, que podemos curtir cada vez mais e melhor os bons filmes, que as conversas sofisticadas com os amigos queridos são uma delícia e que estamos sendo capazes de evoluir emocional e moralmente talvez sejam nossos maiores prazeres intelectuais, certamente os únicos comparáveis com os prazeres do sexo. Os genuínos prazeres intelectuais independem da vaidade, pois a boa conversa e a emoção ao ouvir uma música não necessitam de observadores – essenciais no exibicionismo.
Os avanços intelectuais e morais nos levam a ser criaturas disciplinadas e costumam trazer grande satisfação íntima. O que chamamos de auto-estima é relacionado com isso, uma vez que podemos fazer um juízo cada vez melhor de nós mesmos. Eles vêm acompanhados de melhores resultados práticos, o que reforça a vaidade. Os avanços profissionais se tornam quase que inevitáveis.
Um outro avanço fundamental também ocorre e esse tem a ver com o aspecto sentimental. Uma boa auto-estima altera o foco da admiração, que passa a se dirigir na direção das pessoas com quem as afinidades predominam. Passamos a nos encantar por pessoas escolhidas segundo os mesmos critérios que os amigos, ou seja, aqueles com quem temos o enorme prazer intelectual derivado de conversas intensas e sinceras. Amigos são criaturas confiáveis. Amigos determinam prazeres positivos porque não precisamos nos sentir desamparados ou tristes para que apreciemos muito a companhia deles. Ao estabelecermos o elo relacionado ao aconchego sentimental com um parceiro que também seja o nosso melhor amigo, estaremos nos aproximando do melhor dos mundos.
Flávio Gikovate
O exemplo mais típico de um prazer positivo é a excitação sexual: saímos do zero, do bem-estar, para um estado de inquietação sentido como extraordinariamente agradável. Sentimos a excitação e somos conscientes disso. Quando ela é muito intensa pode até mesmo interromper o processo de pensamento, determinando um estado de êxtase efêmero, mas suficientemente gratificante para justificar a busca insistente do prazer erótico por parte de quase todo o mundo.
A excitação sexual se manifesta a partir da estimulação táctil das zonas erógenas tanto quando elas são praticadas individualmente como também quando elas derivam de trocas de carícias entre duas pessoas. Nos homens, a excitação pode depender também de estímulos visuais, sem que haja nenhum tipo de contato. Os objetos de desejo sexual são de natureza muito diferente dos objetos amorosos, pois são múltiplos e indiscriminados; e nem sempre estão em sintonia com os sentimentos amorosos. O objeto do amor é muito específico, de modo que penso que só neste caso cabe falar em efetiva relação. As trocas de carícias eróticas são chamadas de relações sexuais, mas não sei se chegam a ser mesmo “relações” – isso quando acontecem fora do envolvimento amoroso.
A questão sexual é extraordinariamente complexa em nossa espécie por diversos motivos. Como as “relações sexuais” podem determinar a reprodução, sempre estiveram fortemente regulamentadas. Sempre foram mal vistas por certas correntes religiosas por serem fonte de grandes prazeres. Além disso, contém mais um ingrediente, este sim difícil de ser equacionado. Estou me referindo à vaidade, ao prazer erótico relacionado com o exibicionismo, com o atrair olhares de admiração e eventualmente de desejo, com o ato de se destacar. O destaque pode acontecer por força da beleza ou outras competências físicas extraordinárias. Ele pode se manifestar também em outras áreas, como nas realizações profissionais, artísticas ou intelectuais. Atraem a admiração e despertam uma excitação muito grande na pessoa que consegue se sobressair.
Penso na vaidade como o mais complicado elemento da nossa subjetividade. Ela é responsável pela busca de notoriedade, de chamar a atenção, da pessoa se sobrepor às outras. Acontece que aquelas que não conseguem igual destaque – e que são a maioria – se sentem diminuídas, incomodadas, invejosas e revoltadas. O destaque implica sempre na presença de propriedades incomuns, privilégio de uma minoria. Constituem-se assim as “felicidades aristocráticas”, relacionadas com a beleza física, com dotes atléticos espetaculares, com uma inteligência privilegiada, algum dote artístico valorizado ou mesmo a posse de muitos bens materiais. Elas podem fazer bem aos que as possuem, mas desequilibram as sociedades, gerando ondas de hostilidade invejosa insolúveis.
O sexo é prazer físico positivo por excelência e, por meio da vaidade, pode contaminar também os prazeres intelectuais. Existem outros prazeres físicos e que são de natureza mais democrática. Talvez devêssemos, como sociedade e como indivíduos, nos ater mais a eles. Podemos nos deleitar com a dança, com os esportes individuais por meio dos quais estamos apenas nos tornando cada vez mais bem condicionados – sem expectativa competitiva alguma. Ficamos felizes ao conseguirmos chegar ao peso desejado, ao sentirmos nosso corpo rendendo o máximo. Essas são “felicidades democráticas”, uma vez que estão aí à disposição de todos aqueles que se disciplinarem e dedicarem algumas horas da semana ao cultivo do corpo.
OS PRAZERES INTELECTUAIS - Graças ao “software” sofisticado que conseguimos construir, fomos capazes de desenvolver prazeres intelectuais autônomos – apesar de que eles também estão contaminados com a vaidade, elemento erótico por excelência. Aprender é um prazer positivo que nos acompanha desde tenra infância e que deveria ser cultivado sempre. Aprender é prazer profundamente democrático, já que aí há espaço para que todos evoluam. Perceber que conseguimos apreciar melhor as artes, que podemos curtir cada vez mais e melhor os bons filmes, que as conversas sofisticadas com os amigos queridos são uma delícia e que estamos sendo capazes de evoluir emocional e moralmente talvez sejam nossos maiores prazeres intelectuais, certamente os únicos comparáveis com os prazeres do sexo. Os genuínos prazeres intelectuais independem da vaidade, pois a boa conversa e a emoção ao ouvir uma música não necessitam de observadores – essenciais no exibicionismo.
Os avanços intelectuais e morais nos levam a ser criaturas disciplinadas e costumam trazer grande satisfação íntima. O que chamamos de auto-estima é relacionado com isso, uma vez que podemos fazer um juízo cada vez melhor de nós mesmos. Eles vêm acompanhados de melhores resultados práticos, o que reforça a vaidade. Os avanços profissionais se tornam quase que inevitáveis.
Um outro avanço fundamental também ocorre e esse tem a ver com o aspecto sentimental. Uma boa auto-estima altera o foco da admiração, que passa a se dirigir na direção das pessoas com quem as afinidades predominam. Passamos a nos encantar por pessoas escolhidas segundo os mesmos critérios que os amigos, ou seja, aqueles com quem temos o enorme prazer intelectual derivado de conversas intensas e sinceras. Amigos são criaturas confiáveis. Amigos determinam prazeres positivos porque não precisamos nos sentir desamparados ou tristes para que apreciemos muito a companhia deles. Ao estabelecermos o elo relacionado ao aconchego sentimental com um parceiro que também seja o nosso melhor amigo, estaremos nos aproximando do melhor dos mundos.
Flávio Gikovate
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