domingo, 13 de novembro de 2011

O que significa, na prática, viver em paz?


Vamos caminhar bem devagar e tratar de pensar um pouco mais sobre cada um destes itens. Somos um animal muito especial, dotado de um sistema nervoso central privilegiado e que foi capaz de ser utilizado de forma sofisticada graças à elaboração da linguagem – que talvez seja nossa mais importante criação. Costumo dizer que nosso cérebro é o “hardware” e que o utilizamos porque fomos capazes de elaborar um “software” competente. Nascemos com o cérebro pronto, mas o “software” foi construído por nossa espécie. É nossa marca registrada, nossa maior conquista, nossa alma. Nos distancia de forma definitiva e radical dos outros animais, apesar de conter inúmeros erros – e não poderia ser diferente, pois foi criada por nós e sem a ajuda de nenhum manual!

Ainda assim, somos parte do reino animal. E nele as reações químicas, os equilíbrios e desequilíbrios entre os líquidos que envolvem as células e o conteúdo delas, as sensações de saciedade, fome e sede, a necessidade de eliminar excrementos, os calores e frios acontecem continuamente. Nos equilibramos e nos desequilibramos em todos estes aspectos da biologia o tempo todo. Vivemos ao redor de um ponto de equilíbrio, de um estado chamado homeostase. Agora, este estado é sempre momentâneo: estamos saciados de comida e bebida (equilíbrio) e logo depois voltamos a sentir sede ou fome (desequilíbrio); nos alimentamos e nos reequilibramos. O mesmo acontece com tudo o que diz respeito ao nosso organismo.

Nosso psiquismo registra, sob a forma de pensamentos e sensações, o que acontece no organismo. Nos sentimos bem por algum tempo e logo surge algum desconforto – desequilíbrio – que nos impulsiona na direção de tentar neutralizá-lo. O equilíbrio se refaz e se desfaz o tempo todo. Nos sentimos bem quando conseguimos passar a maior parte do tempo perto deste ponto de equilíbrio, próximo do ponto que corresponde ao chamado equilíbrio homeostático. Oscilar em torno dele é viver bem e em paz.

Se estivéssemos o tempo todo em paz, talvez nos sentiríamos um tanto entediados. Mas não é necessário nos preocuparmos com isso porque se trata de uma condição que jamais irá acontecer. Na vida real sempre experimentaremos alguns desconfortos. Sentiremos fome e isso é doloroso. Quando conseguirmos ter acesso ao alimento, sentiremos um prazer que deriva do fim desta dor. É interessante reprisar que, em nós, existe uma clara sensação de prazer quando saímos de uma condição negativa para perto do ponto de equilíbrio homeostático. Este é um exemplo do que é chamado de prazer negativo, ou seja, aquele que sentimos durante a transição de uma situação dolorosa para a estabilidade. Os prazeres negativos dependem da presença prévia de alguma dor e acontecem quando voltamos à condição de estar bem.

O prazer negativo mais importante talvez seja a saúde. O sofrimento, a dor, corresponde à doença. Ao nos livrarmos dela, sentimos um enorme prazer que acontece “apenas” porque voltamos ao nosso estado usual. É interessante notar que nosso psiquismo não se ocupa muito daquilo que está indo bem. Desta forma, só damos valor à saúde depois de termos estado doentes, privados dela. Ainda assim, a alegria derivada da reconquista do bem-estar físico dura uns poucos dias. Depois voltamos a achar “normal” ter saúde.

Como temos um psiquismo complexo, podemos sofisticar a resolução dos nossos desconfortos – prazeres negativos – sendo que isso agrega mais prazer – e aí positivo, ou seja, prazer que não está diretamente relacionado com a resolução de um desconforto. No caso da comida, o alimento preparado de uma forma requintada e criativa agrega prazeres positivos à resolução do prazer negativo relacionado com a fome. No caso do vestuário isso é ainda mais evidente: a necessidade de nos protegermos contra as intempéries se transforma em fonte de prazeres eróticos exibicionistas complexos e dos quais me ocuparei adiante.

A resolução dos desconfortos e a capacidade de vivermos próximos do estado de equilíbrio que nosso psiquismo registra como bem-estar depende, em uma sociedade complexa como em que vivemos, do dinheiro. Assim, não acho conveniente desconsiderar a importância dele para que possamos ter um teto legal, comer bem, vestirmos roupas confortáveis e principalmente acesso aos recursos médicos tão essenciais. As dúvidas acerca da importância do dinheiro existem apenas no plano do supérfluo, ou seja, quanto nos faz feliz termos um armário cheio de roupas, termos acesso a locais luxuosamente decorados entre outros exemplos. Pessoalmente penso que o maior problema é que as pessoas não gostam de se sentir por baixo (dor grande relacionada com o que chamamos de humilhação). Quando vivem numa sociedade que valoriza muito estas coisas, aqueles que não as têm se sentem mal. Em outro ambiente, no qual ninguém tivesse tantos bens, talvez a necessidade de possuí-los diminuísse imediatamente. Mas este espaço é pequeno para analisarmos todos os ingredientes relacionados com esta que é uma das questões mais difíceis de serem abordadas.

Flávio Gikovate

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